Desde pequena que ouvia as mulheres à minha volta queixarem-se das “maleitas” femininas e por isso cresci com a noção de que o corpo da mulher era um corpo imperfeito. Mais tarde percebi que essa ideia que tinha sobre o corpo feminino se estendia para a quase generalidade das mulheres.
Quando voltamos atrás na história da medicina, conseguimos perceber como é que esse conceito de corpo feminino como “tragédia biológica” se desenvolveu. Uma referência que serve de exemplo, provem do filósofo grego Aristóteles na sua obra “The generation of Animals”1 onde refere que a “prole feminina é o resultado de um desenvolvimento menos perfeito” e esta obra foi a que marcou o inicio da história da embriologia ocidental, por isso quer queiramos quer não, as crenças de corpo imperfeito, ainda que por vezes de forma inconsciente, persistem na nossa sociedade e expressa-se de várias formas, entre elas através da medicalização das funções biológicas femininas.
No dicionário online periberam2 a palavra “medicalizar” vem descrita como: Dar carácter médico ou medical; Tratar algo como um problema médico.
Para Agnes Miles, autora do livro Women, Health and Medicine, “medicalizar significa transformar aspetos da vida quotidiana em objeto da medicina de forma a assegurar conformidade às normas sociais3”
E na realidade é exatamente essa objetivação que observamos ao longo da história, ou seja, observamos um constante processo de medicalização do corpo da mulher, reduzindo-o à sua condição biológica.
Também Elisabeth Vieira, autora do livro Medicalização do corpo feminino refere que o ato de medicalizar deu-se por meio da normalização social, ou seja, da necessidade do enquadramento da mulher na sociedade, através do seguimento de regras sociais quer seja no trabalho ou no estilo de vida que nos mantêm alienadas dos nossos corpos e da nossa ciclicidade.
No fundo o que o processo de medicalização fez em relação ao corpo da mulher foi transformar os eventos fisiológicos em doenças, tratando, por exemplo, a menopausa como condição médica que surge devido à “falência ovárica” e não como um processo natural associado ao envelhecimento do corpo; ou transformando a menstruação num evento negativo que precisa de ser evitado quando a mulher não quer engravidar, fazendo-o com recurso a medicação à base de hormonas artificiais que nos são prescritas desde muito cedo sem que tenhamos a possibilidade de conhecer o nosso ciclo ou de desfrutar das vantagens que este nos proporciona e que vão além da concepção.
Foi feita uma referência à pílula contracetiva como poderia ter sido feita referência aos analgésicos para as dores menstruais supostamente “normais”, ou aos ansiolíticos para não estarmos sujeitas a alterações emocionais com risco de sermos excluídas de uma sociedade que privilegia a linearidade emocional, não respeitando a dinâmica biológica das hormonas femininas. Por isso, facilmente percebemos o impacto da medicalização do corpo da mulher, pelo que quando damos por nós, foi uma vida inteira a suprimir várias das funções biológicas do nosso ser, numa tentativa de corresponder às expectativas da sociedade.
Gravidez e Trabalho de parto
Na minha opinião, um dos grandes exemplos da medicalização é a gravidez e o trabalho de parto, acontecimentos estes que foram transformados em intervenções hospitalares.
Certo é que a transformação do parto num ato médico foi justificado pelo elevado índice de mortalidade infantil5 e embora o conhecimento cientifico atual nos dê a possibilidade de humanizar o parto6, continua-se, em muitos hospitais, com a ideia de que a mulher tem ou deve ter, um papel passivo no processo de parto enquanto que o profissional de saúde tem ou deve ter um papel ativo7. É comum ouvirmos as mulheres dizerem que foi o médico Y ou a enfermeira X que lhes fez o parto, quando na realidade quem faz o parto é a mulher.
Quando a mulher entra no hospital para ter o bebé, o seu corpo é encaixado de imediato nos protocolos da instituição. Quantas são as mulheres que se vêm “tocadas” vezes sem conta, por diferentes profissionais sem que sequer lhes seja pedida autorização?8 estão ali a ser “tocadas” quase como um objeto inanimado, isto é, medicalização em excesso.
E isso acontece em diversos procedimentos, desde posições de parto não desejadas, passando por episiotomias desnecessárias9, que até são desencorajadas pela Organização Mundial da Saúde10 ou passando, até mesmo pelo “famoso ponto do marido”11,12, onde se dá um pontinho a mais para apertar a entrada da vagina supostamente para promover um maior prazer ao parceiro, prática esta que roça a mutilação genital.
No entanto, embora ainda se viva numa sociedade em que as mulheres estão sujeitas a uma medicalização exagerada, acredito que, enquanto sociedade, estamos a evoluir e os movimentos feministas que a partir dos anos 70 começaram a dar mais ênfase às questões do corpo feminino, obrigando a sociedade a refletir sobre temas como o aborto, a contraceção e a medicalização, tiveram sem sobre de dúvida um papel fundamental para a evolução que temos vindo a observar.
Mas até quando estaremos sujeitas à medicalização do nosso corpo?
Há, de facto, ainda muito trabalho a fazer para desconstruirmos esta ideia de que ser mulher é ser imperfeita, mas o trabalho está a ser feito, passo a passo, movimento a movimento, palavra a palavra.
Referências
1. Aristotle, Generation Of Animals. Edição: 07-1989, Editor: Harvard University Press
2. “medicalizar”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020.
3. Miles, A. Women, Health and Medicine. Philadelphia: open university Press, Milton Keynes, 1991.
4. Elisabeth Meloni Vieira. Medicalização do corpo feminino, editora Fiocruz, 1ª Reimpressão 2008
5. Conferencia internacional de salud para el desarrollo. A saúde materna e infantil em Portugal: Uma história de sucesso. Agosto 2007 (www2.portaldasaude.pt/NR/rdonlyres/E7A6BABD-57F6-41B7-AAB5-DE7A6835BB15/0/SMIBuenosAires.pdf)
6. Parto Humanizado: deixar a vida acontecer naturalmente (https://hff.min-saude.pt/parto-humanizado-deixar-a-vida-acontecer-naturalmente)
7. Experiências de Parto em Portugal Inquérito às mulheres sobre as suas experiências de parto. Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP). (www.associacaogravidezeparto.pt/wp-content/uploads/2016/08/Experi%C3%AAncias_Parto_Portugal_2012-2015.pdf)
8. “10 cm”, artigo da Associação Portuguesa pelos direitos da Mulher na Gravidez e Parto. (https://associacaogravidezeparto.pt/10-cm)
9. Episiotomia – uso generalizado versus seletivo, BÁRBARA BETTENCOURT BORGES, FÁTIMA SERRANO, FERNANDA PEREIRA Serviço de Ginecologia e Obstetrícia. Maternidade Dr Alfredo da Costa. Lisboa, ACTA MÉDICA PORTUGUESA 2003; 16: 447-454, p.447
10. WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience www.who.int/reproductivehealth/publications/intrapartum-care-guidelines/en/
11. “Ponto domarido: esta “forma machista” de suturar a vagina ainda existe?” (www.pressreader.com/portugal/edicao-publico-lisboa-p2/20200906/281487868751282)
12. Projeto de Resolução 623/XIV: Recomenda ao Governo que garanta a erradicação de práticas abusivas sobre as mulheres na gravidez e no parto e a realização de um estudo sobre “o ponto do marido” (www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=45204)